Desgraça Moderna - análise de uma pandemia gerida ‘à portuguesa’

“Bamolabere”, vou tentar não me esticar porque o vosso stock de atenção não é grande. Quase um mês depois, caiu-me a ficha... Como é que eu e os demais portugueses receberam esta ‘inocente’ mensagem SMS*, logo após o Natal?


Tudo bem que a vacina é uma luz ao fundo do frasco, mas cedo percebi que todo o processo de picar as pessoas duas vezes no braço seria muito moroso. Para além disso, eu, indivíduo saudável de 26 anos, seria dos últimos a receber esta substância milagrosa. Foram administradas 200 mil doses em Portugal, são precisas duas por pessoa e nós somos cerca de 11 milhões. Não sou bom a matemática, mas se ‘Pfizer’ as contas, percebo que ainda só estamos na ponta da agulha.

 

Não era preciso ser um perito para perceber que o Natal ia deixar um gosto amargo no paladar (ou então nem íamos ter paladar por causa da Covid). Trocaram-se compotas no quintal, reuniram-se à mesa os comensais e tentámo-nos abstrair da realidade ‘covídica’, nem que fosse por uma consoada na companhia do Pai Natal. Pena que, pouco depois, tenhamos perdido o controlo do trenó. No dia 26 de Dezembro, os portugueses recebiam a mensagem que está em anexo. Wow, fantástico! O Plano de vacinação começa amanhã - estamos safos! Os media também não ajudaram na transmissão desta mensagem, cantando de galo e substituindo comummente a palavra ‘começa’ por ‘arranca’. Assim, acreditámos que o plano de vacinação ia arrancar cheio de pica no dia 27, como um Fiat Uno arranca de um piquete policial, deixando marcas no asfalto. O aviso termina com “aguarde contacto do SNS”. Este “aguarde contacto” dá mesmo a ideia de proximidade temporal, pena que no meu caso (e no de muitos portugueses), este contacto por parte do sistema Nacional de Saúde só deva acontecer lá para Setembro, com sorte. Pareceu-me que esta singela mensagem da Protecção Civil, não trouxe grande vantagem, sem ser a de o Governo dar um ar de sua graça, passando uma mensagem de competência e eficácia. Infelizmente, o dito SMS poderá ter contribuído para um efeito contrário, lesando o SNS. Relaxámos, fizemos um buffet de contactos familiares e, para sobremesa, visitámos aquela tia-avó em Unhais da Serra que nem gosta particularmente de ver pessoas. Dessa curta estadia em Unhais, trouxemos queijo da Serra e deixámos alguns casos de Covid por lá. No fundo, laureou-se a pevide quando se deveria ter ficado a aboborar no sofá.

 

Seguiu-se a passagem de ano, com pequenos focos de artifício festivo aqui e acolá. A fiscalização foi branda e a contaminação não abrandou. Com o regresso das actividades lectivas começámos a apanhar as canas. Muitos se insurgiram contra o fecho das escolas, argumentando que não seriam as aulas a aumentar os contágios entre a população mais jovem. Pois, só que ‘actividades lectivas’ não contemplam apenas as aulinhas. Para além das lições, temos intervalos, pausas para almoço e momentos de entrada/saída no recinto escolar. É aí que o bicho mexe. Claro que nas aulas todos os alunos estão quietinhos e com a máscara bem posta, mas chegando ali à hora de almoço… As máscaras escorregam dos rostos, há contrabando de gomas, trincas fortuitas em panikes, garrafas de plástico que fazem intercâmbio labial, bafos em cigarros sem dono e, acima de tudo, muitos beijos e afectos (típicos de um Marcelo Rebelo de Sousa em pré-pandemia). Sei do que falo porque já passei por isso. Bem, eu não propriamente porque era um cromo e ficava sempre à margem, mas era mais ou menos isso que a malta fixe fazia. Com a inconsciência típica e natural da juventude que vive o dia-a-dia com leveza e descontração, o coronavírus faz ali um trabalho de grupo jeitoso e cada aluno leva uma ‘carga de trabalhos’ para casa.

 

“Ai, coitados dos nossos alunos que ficarão privados de aprender”, exclamaram alguns, aquando do encerramento das escolas. Trata-se um argumento válido quando falamos das idades mais jovens, principalmente para as crianças aprendem a ler e a escrever. Todavia, se perguntarmos aos alunos do ensino básico ou secundário se preferem sumários na aula ou sumos no recreio, a maioria escolherá a segunda opção, especialmente se estivermos a falar de Coca-cola ou Fanta. Até mesmo um Ice-tea de marca branca do Lidl bate um sumário de Físico-química. Sejamos francos, a escola é importante para os jovens, mas mais pela questão social. E é fora das aulas que a socialização à séria (e consequente contágio) ocorre. Escola não é apenas sinónimo de aulas. Os meus pais são professores e, se lhes perguntarem, eles também vos dirão que o melhor da vida são as actividades extra-curriculares 😏

 

Atravessamos tempos difíceis e mais do que encontrar culpados, urge reduzir ao máximo os números de casos/óbitos provocados por este malfadado vírus. Depende de nós, mas também de quem nos comanda. Se deveríamos já ter confinado integralmente mais cedo? Sim. Se a nossa economia aguenta? Nem por isso. Se gostava de estar na situação dos decisores políticos? Não, mas se estivesse na linha da frente a tratar doentes num hospital em ruptura estaria furibundo como os nossos governantes. Poder-se-ia ter feito mais e com melhor planeamento? Sem dúvida, mas o povo português com a sua sacanice e chico-espertice crónicas não ajudou à ‘festa pandémica’. Resta-nos agradecer aos médicos, enfermeiros e auxiliares de saúde, bombeiros e outros profissionais que estão a segurar isto tudo como podem. Espero que lhes dêem, no mínimo, um aumento salarial de 300 palmas.


Agora vou só dormir uma ‘AstraZeneca’ a ver se, quando acordar, isto melhorou. Resguardem-se e, já agora, votem. Se quiserem votar em branco, votem no Eduardo Nelson que sempre farão sorrir quem estiver a contar os votos.


* a mensagem que a Protecção Civil enviou a 26/12/2020


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