Este comboio não pára em Arroios

Nos últimos anos, tenho ido ocasionalmente a Lisboa. Sempre que lá vou, devido à complexidade desta ‘metrópole’, procuro algo que me oriente, a partir de Oriente. Costuma ser esta a minha estação de partida para usar o Metro. Até hoje não tinha nenhuma razão de queixa, tudo correra sobre rodas, bem encarrilado. Até cheguei a completar percursos que implicavam duas trocas de linha em menos de 15 minutos – um serviço ferroviário de grande nível (pensava eu).

Lisboa só poderia ser mesmo a capital deste país de atrasos, que é Portugal. Em Outubro de 2017, já se ouvia na composição: “este comboio não pára em Arroios”. Hoje, acho que ‘este’ e os outros comboios da linha verde, ainda não fazem a outrora habitual pausa neste mirífico destino. Como nunca tinha utilizado muitas vezes o Metro e sendo eu da província (tudo o que não seja Lisboa ou Porto), até achava que o Metro de Lisboa proporcionava um agradável serviço ferroviário. Meus amigos de Lisboa não entendiam como poderia eu gostar de andar de Metro e de até gabar este meio de transporte que, para eles, era sinónimo de constantes peripécias desagradáveis. Para a maioria dos lisboetas, o Metro está pelas estações da amargura e só existem razões de queixa.
— Ah, o pessoal dramatiza a situação actual do Metro porque, no fundo, só gostam de andar de carro próprio – pensava eu, a caminho do Metro.
Pois, saltei para a outra plataforma da opinião pública quando fiquei 57 minutos dentro de um comboio, preso algures na linha verde. Mais precisamente onde? Arroios. Se a vida corre como um rio, os regatos que deram nome a esta zona da capital, simplesmente não correm. Após esta indesejada espera, lá tive eu de correr para outros compromissos.

É certo que a minha prática de andar de metro é reduzida, todavia já consigo perceber algumas coisas que caracterizam esta faceta subterrânea da cidade de Lisboa e, também, do nosso país. Gosto de afirmar que ‘Lisboa é um buffet de pessoas’, pois se vê por lá todo o tipo de gentes. A alusão ao buffet deve-se mais à diversidade étnica e racial dos transeuntes, não é que queira andar aí comer pessoas... Não sei, talvez por ser natural de um sítio onde predominam quase exclusivamente seres caucasianos, vejo algum encanto em comtemplar os utentes deste metro cosmopolita. Uma vez, num daqueles conjuntos de 4 assentos, sentados estavam: uma senhora africana de meia idade; um turista branquelas algures do norte da Europa; uma jovem asiática e um senhor de origem indo-paquistanesa (para não utilizar o termo pejorativo ‘monhé’. Bem, parece que o usei. A sério que foi sem querer, acreditem). Bom, este quadro humano de olhares no vazio, alheios ao cacharolete racial que ali se compunha de forma tão espontânea e casual, mais parecia um daqueles anúncios da United Colors of Benetton. Quis tirar uma foto, mas não foi tarefa fácil. Sempre que tentava, discretamente, apontar a câmara do telemóvel para esta reunião informal de culturas, uma senhora idosa caucasiana, lançava-me olhares reprovadores. Qual seria o seu problema? Será que estava melindrada por não aparecer na foto? Tenho que admitir que não iria fazer grande coisa com aquela fotografia meio desfocada e com fraca iluminação. Certo é que essa senhora não tinha nenhuma razão para implicar comigo já que o assento ao seu lado estava ocupado por sacos da sua pertença. Quando ela olhava para mim, eu olhava ainda mais para ela e cheguei mesmo a pigarrear, tentando chamá-la à razão. Ela não entendeu a dica. Após uma paragem, entra outra senhora com outros tantos sacos e encaminha-se logo para a nossa zona, que era das poucas onde se avistavam lugares. As duas senhoras com sacos cruzaram olhares e eu entrecruzei-os para ver no que aquilo dava. Alguém tinha de ceder. E assim foi, de forma pacífica. Os sacos de ambas seguiram o resto da viagem no chão para que a recém-chegada senhora pudesse sentar o seu traseiro até ao próximo apeadeiro.

Sai-se um comboio, entra-se noutro e as histórias multiplicam-se como as mãos que se tentam segurar em varão firme. Desde o senhor que toca acordeão com um cachorro amestrado no ombro, ao sujeito cego que insiste em mendigar no metro mesmo com o risco de cair para a linha, passando pelo ‘carocho’ velhaco que inicia uma conversa constrangedora com uma rapariga ‘queque’... Passa-se lá tanta coisa. No mesmo dia, seguia num metro bastante devoluto quando se senta mesmo à minha frente um sujeito de aspecto incomum. Poderia ser um sem-abrigo, mas não se apresentava assim tão andrajoso. Poderia ser um cidadão dito ‘normal’, mas já havia ali um certo grau de indigência. O que é que isto têm de especial? –perguntais vós – bom, não era tanto o sujeito em si que me chamou à atenção, mas mais o que ele fazia. Como poderão ver na ilustração associada a este texto, este senhor trazia ao colo um belo exemplar canino, vestido com um mini-sobretudo em padrão verde-tropa. Contudo, o momento chave foi quando este indivíduo, ao embalar o canídeo de estimação, tira um dos seus auriculares verde-alface e o coloca dentro do ouvido da cadela por breves segundos, perguntando-lhe baixinho:
— Curtes esta?
Tão rápido como entrou na composição, este homem guedelhudo de óculos-de-sol partiu para novas aventuras, deixando muito por responder. De onde viera aquele boné? Como se chamava a cadelinha? Que música seria aquela que ouviam? Só o Metro de Lisboa saberá.

Saí eu também. No corrupio da mudança de linha, pude reparar em algo curioso, enquanto atravessava a estação da Alameda a passo rápido. Apesar da pressa para apanhar outro metro, não consegui deixar de reparar num vistoso anúncio, onde se lia:
“1.5€ a pizza inteira”

Vamos por fatias. Isto até parecia um bom partido, mas quando me acerquei da montra percebi que as pizzas eram relativamente pequenas. Ora, o adjectivo ‘inteira’, neste caso, serve só para aldrabar, fazendo-nos querer que se trata de uma grande pizza e que a vamos poder comer na totalidade. Vai-se a ver e até acaba por ser uma mensagem sem grande nexo. Pensem comigo, quando compramos uma pizza, seja ela grande ou pequena, esperamos que ela venha inteira sem mordidelas na côdea ou uma fatia em falta, verdade? Enfim. Acrescento só que o nome do estabelecimento era ‘Sabores do Metro’, passo a publicidade. A meu ver, este é um nome infeliz. Não é viável descobrir o ‘sabor do metro’, na medida em que isso implicaria andar aí a lamber corrimãos ou a snifar os estofos dos assentos, tudo coisas que não quero fazer. Na impossibilidade de saber qual é o verdadeiro sabor do metro, o nome deste café remete-me para uma outra dimensão sensorial que eu conheço e associo a esta rede de transportes - o olfacto. O cheiro a 'falta de banho', o chulé no Verão e a intersecção de odores de axilas são alguns exemplos. Por isso, não me deixei seduzir nem pelo placard publicitário nem pelo nome do conceito. Ainda assim, fica um sabor, um gosto no ar. O gosto de ser inspirado pela vida e pela bizarria que o Metro de Lisboa nos tem para oferecer.



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