Passagem de Ano

Esta é uma festa estranha, na medida em que estamos todos convidados para a celebração e não existe propriamente um aniversariante. No fundo, festejamos a nossa insignificância existencial face à passagem natural do tempo. É cruel pensar nas coisas assim, mas se não podemos contrariar o avanço dos ponteiros do relógio, o melhor poderá ser mesmo criar uma noite de folia desenfreada. Então, este ano, ao contrário de outras ocasiões semelhantes, decidi não optar pela vertente da festa e assumi o papel de chauffeur e simultaneamente baby-sitter de pessoas alcoolizadas. À falta de ideias melhores, acabei por passar o ano na minha cidade natal, que, diga-se de passagem, não é o melhor local para estar no Réveillon. A sempre inovadora Câmara Municipal de Coimbra preparou um espectáculo de fazer inveja a outros municípios: Três pontos-chave da cidade, três praças suficientemente amplas, três palcos e três estilos de música diferentes para agradar a públicos diversos. WOW! Isto é inédito! Fascinante a ‘inventividade’ e o ‘arrojo’ destes autarcas - sempre acabam por não me surpreender.

Desde o local onde o carro ficou estacionado até ao ‘início da festa’ cruzámo-nos com dois típicos exemplares de foliões - aqueles que acham fixe partir garrafas no asfalto e aqueles que preferem bolçar no passeio com uma mão amiga a segurar-lhes a testa .Começámos o nosso périplo pelo palco mais generalista cuja playlist se assemelhava a um sunset low cost, só que nesta noite fria, ao invés de uma feliz multidão veraneante, tínhamos cerca de uma centena de pessoas dispersas, envergonhadas e afastadas do palco. Quem “comandava as tropas” era um sujeito vestido à marinheiro com uns óculos de sol e com pouco jeito para persuadir aglomerados de pessoas. Às tantas, dizia ele:

— Pessoal, agora quero ver toda a sentar-se e quando a música rebentar vamo-nos todos levantar ao mesmo tempo! (mais uma vez, algo nunca antes visto neste tipo de eventos).

Face à inércia de um público embriagado, ele acabou por se resignar e pedir que as pessoas só baixassem a cabeça, isto caso não se quisessem sentar num chão imundo e repleto de vidro estilhaçado. Que desfeita quase ninguém ter alinhado na brincadeira. O ser humano consegue ser tão picuinhas por vezes… Nisto avançámos para o segundo palco, o reduto da juventude, pejado de crianças e adolescentes rebeldes que aproveitavam para “soltar a franga” longe das amarras educativas dos pais. Uma ‘creche’ ao ar-livre onde os mais novos aprendem a ser crescidos irresponsáveis. No palco, uma dupla que contrastava no tom de pele dos seus intervenientes gritava qualquer coisa do género:

— Yo, somos malucos, yo, yo, e hoje eu vou ficar maluco! Maluco, maluco, maluco!

Estava tudo visto por aquelas bandas, faltava apenas visitar o último recinto musical, conhecido como o “palco dos cotas”. Sim, ao som de êxitos de artistas como Carlos Paião ou Bandalusa, grupos de cidadãos com mais de 40 anos de idade faziam um animado “comboínho” e vibravam loucamente com a performance de dois djs anónimos. Era como se não tivessem outra altura no ano para festejar e deitar tudo cá para fora. E talvez não tenham, às vezes esqueço-me que vida de trabalhador custa. Arrisco dizer que, por norma, o trabalhador diverte-se e o jovem abusa. Foi o que aconteceu a uma moça que se atirou em lingerie para a pequena fonte da Praça 8 de Maio, isto com uma temperatura atmosférica de 8ºC (eis a definição de primeiro banho do ano). Por esta altura, com tanto ‘idoso’ a balançar os quadris num revivalismo forçado, era eu que precisava de refrescar as ideias. Dando a noite por terminada seguimos para um outro destino, conhecido pelos seus bares e oferta de diversão nocturna. Permitam-me este aparte: como assim diversão noctura? Pagar um exorbitante preço de entrada, fumar passivamente durante três horas num espaço abafado, levar com bebida entornada na nossa melhor camisa e ouvir reggaeton a altos berros - hmm, nada disto me transporta para o conceito de ‘diversão’. Não me divirto eu, divertem-se outros, como foi o caso de uma senhora, nos seus cinquenta anos, estatelada à porta de um bar e sem dar sinais de vida. Não me quedei muito tempo a observar todo o aparato com Polícia e INEM presentes, até porque não quis parecer um repórter da CMTV. Deduzi que estivesse tudo bem, talvez tivesse sido simplesmente uma noite dura, dureza materializada pelas pedras da calçada. Chegados ao destino, constatámos que uma das praças mais emblemáticas da cidade estava completamente vazia. Aliás, o único sinal de animação vinha de um carro incorrectamente estacionado no empedrado que lançava hits de kizomba com a ajuda de um potente subwoofer instalado na bagageira. A noite estava mais que enterrada e a última pessoa conhecida que encontrei foi um colega que bebia gin puro directamente da garrafa.

Numa noite em que ainda caminhei uns bons quilómetros poderia queixar-me de algum cansaço físico, todavia pude olhar para a Passagem de Ano com novos olhos, limpos de preconceitos e de confetis. A transição entre um ano e o seguinte é isto, um misto de alegria, tristeza e um monte de coisas que nunca vou compreender. Talvez na próxima passagem de ano consiga ficar mais esclarecido em relação aos múltiplos fenómenos do Réveillon, do mesmo modo que o céu se aclara com a ajuda do fogo de artifício. O ideal será esperar um ano e não deitar os foguetes antes da festa. Até 2019 e pelo meio tenham um bom 2018!





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